Crónica de Alice Vieira | O que dava jeito

Alice Vieira

O que dava jeito

Por Alice Vieira

 

Diziam — porque eu, evidentemente, não me lembro — que eu cantava muito bem quando era pequenina.

Mesmo muito bem.

Muito afinadinha, muito certinha, pausas nos sítios certos, palavras muito bem pronunciadas, essas coisas. Até cantava cantigas em francês— língua que eu tinha aprendido ao mesmo tempo que o português.

Só me lembro de os amigos que iam a nossa casa me pedirem sempre para eu cantar, e depois davam muitas palmas — normalmente acompanhadas de uns chocolatitos ou rebuçados, o que dava jeito.

Cantigas de adultos, claro, aquelas que normalmente se ouviam na rádio ou em discos, cantadas por grandes artistas — nada das cantiguinhas palermas de crianças, que naquela altura se cantavam, “Frère Jacques”, “Savez-vous Planter les Choux”, coisas assim.

Normalmente fados, histórias de grandes paixões e de grandes desgraças — o que, na boca de uma criança, devia soar meio estranho, mas eles gostavam muito. Para mim, que não percebia o que aquelas palavras queriam dizer, estava sempre tudo bem.

Mas havia um fado de que eles todos gostavam muito e estavam sempre a pedir-me para eu cantar. E no fim riam — se todos que pareciam parvos. Ora ainda bem que gostam, pensava eu.

Era o Fado Malhôa, de que todos se devem lembrar: “Alguém/que Deus já lá tem/ pintor consagrado…”etc.

Mas só muito, mas muito mais tarde é que eu percebi por que riam as pessoas tanto quando eu o cantava.

É que, a dada altura, como também se devem recordar, dizia-se “o Zé da samarra / com a amante a seu lado / percorre a guitarra…”, etc.

Como aquilo para mim não fazia sentido nenhum, eu cantava à minha maneira: “o Zé da samarra / com a manta a seu lado…” etc…

Claro. Fazia sempre tanto frio, que uma mantinha confortável dava muito jeito.

 

Alice Vieira


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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